A saudade segundo Dom Duarte I

Imagem da Biblioteca nacional da França (BnF Gallica)
Texto da Universidade de Wisconsin-Madison (WISC)

E a ssuydade nom descende de cada hũa destas partes, mes he hũu sentido do coraçom que vem da senssualidade, e nom da rrazom, e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do nojo. E outros veem daquellas cousas que a homem praz que sejam, e algũus com tal lembrança que traz prazer e nom pena; e em casos certos se mestura com tam grande nojo que faz ficar em tristeza. E pera entender esto, nom compre leer per outros livros ca poucos acharom que dello fallem, mes cada hũu, veendo o que screvo, conssiire seu coraçom no que ja per feitos desvairados tem sentido e podera veer e julgar se fallo certo.

Pera mayor declaraçom ponho desto exempros. Se algũa pessoa por meu servyço e mandado de mym se parte e della sento suydade, certo he que de tal partyda nom ey sanha, nojo, pesar, desprazer nem avorrecymento, ca praz me de sseer e pesarmya se nom fosse. E por se partir algũas vezes vem tal suydade que faz chorar e sospirar, como se fosse de nojo. E porem me parece este nome de ssuydade tam proprio que o latym nem outro linguagem que eu saibha nom he pera tal sentido semelhante. De sse aver algũas vezes com prazer, e outras com nojo ou tristeza, esto se faz, segundo me parece, por quanto suydade propriamente he sentydo que o coraçom filha por se achar partydo da presença d’algũa pessoa ou pessoas que muyto per afeiçom ama ou o espera cedo de sseer. E esso medês dos tempos e lugares em que per deleitaçom muyto folgou. Dygo afeiçom e deleitaçom porque som sentymentos que ao coraçom perteencem, donde verdadeiramente nace a ssuydade mais que da rrazom nem do siso. E quando nos vem algũa nembrança d’ algũu tempo em que muyto folgamos, nom geeral, mas que traga ryjo sentydo, e por conhecermos o estado em que somos seer tanto melhor, nom desejamos tornar a el por leixar o que possuymos, tal lembramento nos traz prazer. E a mingua do desejo per juyzo determynado da rrazom nos tira tanto aquel sentydo que faz a ssuydade que mais sentymos a folgança por nos nenbrar o que passamos que a pena da myngua do tempo ou pessoa. E aquesta suydade he sentyda com prazer mais que com nojo nem tristeza.

Quando aquella lembrança faz sentir grande desejo, outorgado per toda mayor parte da rrazom, de tornar a tal estado ou converssaçom, com esta suydade vem nojo ou tristeza mais que prazer. E por que sobr’ esta lembrança que traz suydade muytos encorrem em pecado, tristeza e desordenança da voontade, lembrandolhes por vista d’ homẽes e molheres casadas, cantygas, cheiros, ou per soltamento doutras fallas e cuydados algũas pessoas com que ouverom algũas folganças quaaes nom devyam ou poderom compridamente aver como desejavam e o leixavam de fazer, e por ello lhes vem desejo de tornar a tal estado e converssaçom, nom avendo reprendimento do mal que fezerom, mas ham desprazer do que nom compryrom, estes proveitosos avysamentos penssei declarar da boa maneira que devemos teer em tal caso.

Primeiro, he conhecer como per contriçom os pecados se perdoam e sem ella mui poucas vezes ou nunca. E por que tal suydade com desejo deliberado de tornar ao mal que fez priva toda contriçom e faz ressurgir, segundo dicto de sam Paulo, aquel mal que ja destroyra, porende assy como do aazo da morte pera sempre he de guardar de tal payxom e sentymento.

Comentários